CineMais n'O Diabo

Uma novidade no semanário «O Diabo» de hoje é a estreia da secção "CineMais", uma coluna da minha autoria, onde escreverei sobre filmes, a partir de agora, fazendo também algumas sugestões para a semana.

Neste primeiro texto, decidi falar do filme que mais me marcou no ano passado: Gran Torino. Aqui fica o primeiro parágrafo: "Gran Torino, o grande filme de 2009 é, tecnicamente, de 2008, pois em Dezembro desse ano foi projectado pela primeira vez nos EUA. No entanto, só no ano seguinte se seguiria a estreia noutros países, incluindo o nosso. Clint Eastwood, que tem vindo a tornar-se um realizador de primeira linha – lembremo-nos de filmes como Mystic River, Million Dollar Baby, e os extraordinários Bandeiras dos nossos pais e Cartas de Iwo Jima –, não deixou ninguém indiferente com esta obra-prima, onde foi igualmente o actor principal, que o elevou até ao estatuto de mestre cinematográfico." [continua na edição desta semana de «O Diabo»]

Tetro

Fui ver o regresso de Coppola e gostei. "Tetro" podia ir mais além, talvez tivesse a possibilidade de se tornar um filme de culto. Todas as questões e muitas das críticas que li podem até ser justificadas, mas não quero deixar de salientar alguns dos aspectos positivos. A lembrar "Rumble Fish", a alternância entre o preto e branco e a cor funciona na perfeição, desta vez em digital. Também a história, apesar de o desenrolar do final não ter o brilhantismo que tem no início, retrata um ambiente em que Coppola está como "peixe na água": um reencontro familiar que esconde um segredo, onde nada corre como esperado. Tudo isto se passa em Buenos Aires, o que só por si constitui outra maisvalia nesta surpresa. Na prestação dos actores, há que lamentar o desempenho q. b. de Vincent Gallo (conseguiria melhor?), e louvar o notável trabalho de Maribel Verdú. Feitas as contas, chega a três estrelas... e meia, se houvesse tal classificação.

Pratt inédito


No «Figaro Magazine» vi alguns extractos do álbum póstumo de Hugo Pratt, publicado recentemente em França. Trata-se de uma obra do início dos anos 70 que só foi encontrada em 2007 por um antigo redactor do «Corriere dei Piccoli», onde Pratt trabalhou. Se uma descoberta tardia destas é desde logo fantástica, a história não podia ser melhor, pelo menos para quem, como eu, cresceu no ambiente das aventuras de Emilio Salgari — considerado no artigo do «Figaro Magazine» como o Jules Verne italiano. Sandokan, o Tigre da Malásia, herói da minha infância — dos livros, da série televisiva, dos cromos — passado à nona arte pelo mestre Pratt, ainda por cima com grandes semelhanças com Corto Maltese, é uma surpresa daquelas. Directo para a lista de compras!

Este país não é para velhos

Vi o aclamado filme dos irmãos Coen “Este país não é para velhos” com grande satisfação, já que as minhas expectativas estavam bem altas depois de tantas críticas favoráveis e prémios internacionais, incluindo óscares.

Passado nos anos 80 no Texas, conta-nos a história de um redneck que encontra uma mala recheada notas no meio do deserto, num local onde houve um tiroteio resultante de um desaguisado no tráfico de droga. O que parece um golpe de sorte para Llewelyn Moss, que vive num trailer park com a mulher, transforma-se numa perseguição que irá jorrar muito sangue, depois de um erro reconhecido a priori pelo próprio.

Num filme intenso, mas nunca acelerado, os realizadores voltam a explorar como ninguém os pormenores do interior da América: os hábitos, os ritmos, os nomes, o sotaque, os erros gramaticais, etc. Tudo características que reconhecemos num mundo que vemos em mudança. A violência desmedida e a ânsia do dinheiro, num país onde sempre tudo foi duro, atingem tais proporções que entram na normalidade.

Este é um enredo onde tudo se cruza, mas onde aqueles que esperamos nunca se encontram. As sequências pré-formatadas de Hollywood não se aplicam aqui. O herói clássico está à beira da reforma e nada pode, o herói ocasional não vence triunfante e o vilão principal, de uma frieza aterradora e ausência de sentimentos, é o único fiel a princípios em quem mais ninguém se revê.

Com uma óptima históriabaseada no romance homónimo de Cormac McCarthy, excelente passagem à tela e excepcionais representações, este é um must see, de que apenas posso dizer que consegue superar “Fargo”.

A norma do caos

Há muito de autobiográfico em “O Pintor de Batalhas”. Neste romance que é uma reflexão profunda e intensa, Arturo Pérez-Reverte conta a história de André Faulques, um fotógrafo de guerra que se refugiou numa torre de vigia do século XVIII à beira do Mediterrâneo, onde, solitário, pinta um grande fresco na sua parede. A troca da câmara fotográfica pelos pincéis tem uma razão, que é o mote deste livro: “Se, como defendiam os teóricos da arte, a fotografia recordava à pintura o que esta nunca devia fazer, Faulques tinha a certeza de que o seu trabalho na torre recordava à fotografia o que esta era capaz de sugerir, mas não de conseguir: a vasta visão circular, contínua, do xadrez caótico, regra implacável que governava o acaso perverso a ambiguidade do que governava o quê não era em absoluto casual do mundo e da vida. Aquele ponto de vista confirmava o carácter geométrico dessa perversidade, a norma do caos (...)”.

Faulques é visitado por um homem que o informa prontamente que o quer matar. Trata-se de Ivo Markovic, fotografado pelo pintor de batalhas durante a guerra da ex-Jugoslávia, que antes de concretizar o seu intento deseja que ele “compreenda algumas coisas”. Inicia-se, assim, uma longa conversa entre ambos. Esta visita inesperada é um regresso do seu passado, fá-lo voltar à guerra e à memória de um amor nunca esquecido, numa verdadeira viagem interior, ao mesmo tempo que fala sobre arte e sobre a sua pintura. Num desses diálogos, sobre pintores considerados mestres, há uma passagem muito interessante, onde Markovic diz: “(...) Picasso também pintou um quadro de guerra. Guernica, chama-se. Embora, na realidade, ninguém diria que é um quadro de guerra. Pelo menos, não como este. Não é verdade?” Ao que Faulques responde, implacável, “Picasso nunca viu uma guerra na vida.

Para quem já gostava de Pérez-Reverte, como eu, este livro é a melhor confirmação do talento deste escritor espanhol. Para os que ainda o desconhecem é, com certeza, uma descoberta fantástica.

All the way down


The Wrestler fez correr muita tinta sobre o regresso de Mickey Rourke aos grandes papéis e, especialmente, no paralelo entre a vida de Randy 'The Ram' Robinson, personagem por ele interpretado, e a sua própia. A história de um famoso wrestler dos anos 80 que agora sobrevive num circuito de segunda assentou que nem uma luva a Rourke. Quem melhor para representar uma estrela decadente? A verdade é que ele, debaixo do seu aspecto desfigurado e monstruoso, nos revela o grande actor que muitos pensavam fatalmente perdido. Quando alguém me falava mal de Mickey Rourke recordava-me logo de Rumble Fish, agora vou lembrar-me também de The Wrestler. Outra óptima prestação é a de Marisa Tomei, uma stripper com quem The Ram tenta sem sucesso uma relação séria e cuja profissão, em muitos aspectos, se assemelha à dele.

Sempre agarrado a glórias passadas, este lutador não quer desistir, mas a sua saúde força-o a isso. Ensaia, a partir de aí, uma tentativa de uma vida “normal”, um novo rumo de quem se retirou. Mas nada corre de feição, conseguindo mesmo estragar o reatar de uma relação com a filha, para quem sempre foi um ausente. Perante o descalabro, resta-lhe a que sempre foi a sua vida, o wrestling, e a que sempre foi a sua família, os espectadores.

Darren Aronofsky, que já em Requiem for a Dream demostrara grande talento, realiza optimamente este último combate de uma vida que foi sempre a descer, com um excelente ritmo e planos muito bem conseguidos.

Li algures que este filme tinha um “final americano”. Não sei que outro final poderia ter um filme passado no mundo do wrestling. Seja como for, não podia acabar melhor.

Se não fosse o monstro...

Fui ver o filme Cloverfield, porque a minha mulher é grande fã das produções de J. J. Abrams, e devo dizer que o melhor foi mesmo a ida ao cinema juntos, que nos lembra sempre outros anos em que havia tempo para tudo.

Não gosto de cocktails, tenho sempre a sensação que tanta mistura serve para esconder algo, quanto mais não seja a falta de jeito ou inspiração. Este filme é exactamente isso. Um exercício de colagem que podia definir-se como um “Blair Witch Project/9-11”, com um cheirinho a Lost e umas salpicadelas de Escape from New York, Starship Troopers, Godzilla e King Kong, onde se desenrola uma tentativa de história de amor.

A favor do filme há, sem dúvida, o monstro. Se bem que eu, como apreciador incondicional de filmes clássicos com mostros, incluindo os Godzilla e Gamera série B, sou suspeito. Mas devo dizer que quando ouvi o som emitido pela criatura, perante as semelhanças com a “nuvem de mosquitos” que passa por monstro na série Lost, temi o pior. Felizmente o destruidor de Nova Iorque no filme está bem conseguido nas cenas monumentais, o que já não se pode dizer nos grandes planos. Bom está também o final, apesar de expectável, e serão com certeza interessantes as mensagens ocultas, para quem aprecie. Foi o caso do meu amigo Miguel Vaz, que me perguntou: Não gostaste? Nem por isso... Acho que merece no máximo duas estrelas (daquelas que se dão nos jornais) porque um filme onde um monstro gigante destrói uma cidade é sempre divertido.

The Man in the High Castle

De Philip K. Dick, mestre da ficção científica, não posso deixar de fazer uma referência obrigatória ao excelente “The Man in de the High Castle”. Nesta incursão pelo universo da história alternativa, PKD apresenta-nos um mundo onde o Eixo ganhou a II Guerra Mundial e os EUA estão, por isso, ocupados na costa leste pelos alemães e na costa oeste pelos japoneses. No centro, os Rocky Mountain States são autónomos e é aí que vive o autor do muito popular e lido, apesar de censurado nas zonas ocupadas: “The Grasshopper Lies Heavy”. Este “livro-dentro-do-livro” conta uma versão diferente da História, na qual os Aliados ganharam a guerra. Mas as surpresas desta obra de Dick não ficam por aqui, quando nada é o que parece, é a própria realidade que fica em causa…

Tropa de Elite

Tropa de Elite”, de José Padilha, ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim. Mesmo depois de uma campanha que o classificava como “fascista”, o júri decidiu reconhecer o excelente trabalho do realizador brasileiro.

Vi este filme polémico da mesma forma que milhões de brasileiros — através de uma cópia pirata. Vi e tornei a ver, porque não é todos os dias que aparecem coisas destas. O que era para ser um documentário sobre o Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, conhecido por BOPE, tornou-se uma obra de ficção perante a ausência de militares dispostos a prestar o seu depoimento. O resultado foi um controverso sucesso, agora justamente premiado.

A acção desenrola-se naquela que é — como se afirma claramente —, a guerra que se vive no Rio de Janeiro. Na qual, para fazer frente aos traficantes das favelas, bem armados graças à corrupção generalizada, só um corpo de elite, constituído por militares incorruptíveis, alvo de uma selecção criteriosa e formação exigentíssima, consegue levar a melhor. O BOPE não é para brincadeiras e os seus inimigos também não. Defrontam-se num dos mais complicados teatros de combate urbano — os labirínticos morros. A preparação dos militares, a sua coragem e determinação garantem que sejam os melhores. Não hesitam em ser brutais e usar formas de tortura naquele inferno, porque guerra… é guerra.

Mas apesar das espectaculares cenas de acção, realísticas e muito bem ritmadas, que alguns criticaram como americanizadas, “Tropa de Elite” não se resume a um “filme de bang-bang”, como se diz no Brasil. É um retrato social de um país, que mostra as intrincadas redes de corrupção que se estendem a praticamente todos os aspectos do quotidiano e a existência de uma classe abastada que vive num mundo à parte, diametralmente oposto, mas no qual muitos, enquanto fumam maconha, sonham em salvar os “pobres e oprimidos”, que apenas traficam porque são excluídos da sociedade… Onde é que já ouvimos esta conversa antes? A realidade mostrada no filme arrasa totalmente tais posições utópicas e mostra o seu efeito perverso, porque como nos diz o narrador a determinada altura: “não há nada pior que rico com consciência social”.

Nota sobre o Senhor dos Anéis

A trilogia cinematográfica The Lord of the Rings faz parte dos meus filmes de culto, mas devo esclarecer que não foi mais um filme...

Conheci J.R.R. Tolkien, através de O Senhor dos Anéis, por indicação de um amigo e colega do 1.º ano de Latim, isto no 10.º ano de escolaridade. Foi uma experiência maravilhosa entrar na Terra Média e conhecer todo um passado mitológico da Europa. Senti-me afortunado por viver toda aquela aventura e fazer parte de um mundo que começávamos a considerar nosso. É uma sorte ler Tolkien na adolescência, nessa idade das paixões, das descobertas, do tempo interminável... Lembro-me como, com esse amigo, estudávamos os apêndices genealógicos, cronológicos e históricos, bem como os sobre os calendários, as línguas e as raças da Terra Média. Aquele mundo existia em nós; existira, sem dúvida, num tempo perdido, próprio.

A forma como esta obra me havia tocado, criou a certeza da impossibilidade de uma transposição cinematográfica. Reforçada quando vi, tardiamente, a versão animada de Ralph Bakshi, datada de 1978.

Tudo isto explica porque, tantos anos depois, não fui ver The Fellowship of the Ring ao cinema, apenas os seguintes. Isto perante o espanto e a incompreensão da minha mulher e amigos, conhecedores da minha admiração pela obra do escritor inglês. Temia, claro está, pelo seu abastardamento, bastante provável neste mundo do “politicamente correcto”. Mas a minha renitência e desconfiança dissipou-se graças ao DVD do primeiro filme. Foi com grande agrado e alívio que verifiquei que, apesar de continuar a existir um Senhor dos Anéis só meu, o trabalho magistral de Peter Jackson concretizou um Senhor dos Anéis de todos nós.

Império à deriva

Como o que é bom é para aconselhar, aqui fica a sugestão de leitura de “Império à Deriva a Corte Portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821”, do australiano Patrick Wilcken, publicado entre nós pela Livraria Civilização Editora. Como o título indica, o livro trata da mudança da capital do império português para o Brasil, que implicou a viagem transatlântica de cerca de dez mil portugueses, motivada pelas invasões napoleónicas. Apesar de ser um conhecido episódio da História de Portugal, este foi um caso único que atraiu a atenção deste autor estrangeiro. Tudo nesta aventura é atribulado, de tal forma que dificilmente a ficção podia superá-la. Nesta obra sem pretensões académicas, apesar de ser notório um excelente trabalho de investigação, a narrativa, muito bem construída, prende até o leitor menos habituado a estes temas. Este é um livro essencial para compreender a História do Brasil e de Portugal, ao mesmo tempo que capta o espírito português da altura, inalterado e reconhecível ainda hoje.

Sin City

A primeira coisa a que associo o nome de Frank Miller é a ao seu excelente trabalho no Demolidor e na “Saga de Elektra”, que li ainda miúdo, naquelas revistas brasileiras que assassinavam os comics com as estúpidas reduções de tamanho e as traduções para esquecer. Desde então, acompanhei os trabalhos deste autor que se um tornou um desenhador mítico no universo da BD. Há pouco mais de dez anos, quando seguia os comics americanos regularmente, li em primeiríssima mão uma obra-prima chamada “Sin City”. Que pedrada no charco! Li e reli. A partir daí acompanhei o que foi publicado sobre esse mundo da “Cidade do Pecado”, que o mestre Miller havia criado.

É claro que na altura era impensável tal história passar ao cinema, mas o tempo traz surpresas… Pela mão de Robert Rodriguez e Frank Miller himself, “Sin City” chegou às grandes telas.

Devo dizer que gostei de o ver e o considerei bom. No entanto, acho importante partilhar esta reflexão, em especial com os apreciadores de BD. Quando vou ver um filme baseado num comic, saio normalmente a enumerar todas as diferenças entre o publicado e o filmado. É um exercício comum, já que muitas bandas desenhadas são vistas como guiões de filmes e esperamos encontrar na tela o mesmo que no papel. Ora, é isso que acontece com “Sin City”. O filme cruza três histórias, originalmente publicadas em separado, reproduzindo-as tal e qual, com a ajuda de uma realização que respeita, se não imita, o ritmo dos comics e de excelentes caracterizações e cenários digitais. O elemento novidade, ou surpresa, perde-se, assim, para os conhecedores da “Cidade do Pecado”. Depois de ter visto e gostado da transposição exacta de “Sin City”, fico à espera de uma adaptação livre.