A FESTA DE STALLONE

Parece que Sylvester Stallone decidiu fazer uma espécie de encontro dos antigos combatentes dos filmes de acção de Hollywood. Convidou todos os amigos e realizou uma obra que apenas se pode considerar uma paródia em homenagem a este género. O problema é que, mesmo assim, é uma estopada.

O argumento resume-se a uma colecção dos lugares-comuns deste tipo de filmes. É aborrecidamente previsível e penosamente sem piada. A única cena cómica verdadeiramente engraçada é protagonizada por Arnold Schwarzenegger, na fugaz aparição do agora governador da Califórnia. Há que dizer que a ideia das cenas em que Stallone goza com ele próprio é boa, mas simplesmente não resulta.

Não sou daqueles que descartam automaticamente este italo-americano com hipertrofia muscular, que garantiu um lugar entre os grandes nomes dos actores de filme de tiros e pancada. Há que dizer que o primeiro Rambo, “A Fúria do Herói” (1982), é um bom filme sobre o difícil regresso da Guerra do Vietname, bem como o primeiro “Rocky” (1976), com o devido encaixe. O que se seguiu nessas duas séries – aparentemente intermináveis – foi muito mau, mas ao que parece foi apenas motivado pelo lucro fácil perante um público “pouco exigente” (para ser simpático). Mas Stallone foi construindo a sua carreira, como quis e entendeu, atingindo um estatuto que lhe permite, agora, fazer brincadeiras como “Os Mercenários”.

Descurando enquadramentos e necessidade narrativa, como era de esperar, há acção com fartura; para “dar e vender”, como reza a expressão popular. Explosões, tiros, armas potentes e pancadaria da grossa, com cenas explícitas e brutais. Mas isso é o menos, porque o pior – mesmo considerando que é uma paródia – é a historieca do ditador de uma minúscula ilha latino-americana ficcionada, com uma bandeira que mais parece de um país árabe, controlado por um mauzão renegado da CIA. Perante tal cenário, um grupo de mercenários aparece para “salvar o dia” – numa tradução directa da expressão americana – muito ao jeito da série televisiva “Soldados da Fortuna”, tendo como contacto a própria filha do general, defensora da liberdade. Já fora da paródia, o espírito do filme é que a América é que é fixe. Aqui, até estes guerreiros a soldo acabam por ter valores e princípios. Pelo meio, ainda debitam algumas das diabolizações recentes da propaganda norte-americana, como na referência aos “malvados sérvios”.

O exagerado elenco de estrelas caídas (pelo menos etariamente) serve apenas para comentar para o lado: “Olha aquele, como ele está…” O mais ridículo é mesmo a recusa da idade de tantos deles, com o recurso à cirurgia plástica, tão em voga, mas que chega a desfigurar as pessoas. O cúmulo é um Mickey Rourke que mal se consegue levantar da cadeira. Para concluir, digo apenas que ir ao cinema ver estes “dispensáveis” é sem dúvida dispensável. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]



OS MERCENÁRIOS
Título original: The Expendables
Realização: Sylvester Stallone
Com: Sylvester Stallone, Jason Statham, Jet Li, Dolph Lundgren, Eric Roberts, Randy Couture, Steve Austin, David Zayas, Giselle Itié, Terry Crews, Mickey Rourke, Gary Daniels, Arnold Schwarzenegger, Bruce Willis
EUA, 2010, 103 min.
Estreia em Portugal: 13 de Agosto de 2010.
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OS NOSSOS BRINQUEDOS

Confesso: conservo ainda a maior parte dos meus brinquedos de infância. Não só por motivos sentimentais, mas principalmente devido à minha veia coleccionista. Alguns dei-os já ao meu filho, mas muitos continuam na arrecadação. Como que a dizer que certas coisas que guardamos de outros tempos as vamos passando, gradualmente, às gerações seguintes.

Quem estranhar estas linhas, percebê-las-á quando vir o perturbante início do último filme da trilogia “Toy Story”, iniciada em 1995. O tempo passou e Andy já não é mais uma criança. Vai para a universidade e isso implica mudanças em casa. Decide colocar o seu ‘cowboy’ Woody nas coisas que vai levar com ele e o resto dos seus brinquedos num caixote para guardar no sótão. No entanto há um equívoco que leva os nossos conhecidos heróis a quase serem triturados por um camião do lixo, para acabarem doados a um infantário onde os mais pequenos os tratam, literalmente, à pancada. Mas isso não é o pior, pois depressa descobrem que foram parar a um verdadeiro ambiente prisional controlado por um grupo de brinquedos maus liderados por Lotso, um traumatizado urso de peluche cor-de-rosa.

A partir daí vai viver-se uma aventura para miúdos e graúdos, com várias referências a clássicos, numa história que junta a fuga e o reencontro, a desilusão e o recomeço. Pelo meio há uma série de situações cómicas muito bem conseguidas, como a cena em que Buzz Lightyear, o astronauta do Comando Estelar, é reprogramado pelos seus captores para um modo em que fala espanhol.

Uma das coisas mais extraordinárias e surpreendentes nesta obra dirigida por Lee Unkrich é a personagem Ken, o companheiro da Barbie, a quem é dito a determinada altura: “Tu não és um brinquedo, és um acessório!” Este dilema, ao qual se juntam o estilo desajeitado e efeminado proporcionam ao filme situações verdadeiramente hilariantes.

Esta é a primeira longa-metragem da Pixar a ser realizada em 3D, mas não exagera, felizmente. Aliás, toda a tecnologia neste filme é – como deve ser – acessória. Aqui o interesse fundamental é a história, a riqueza das personagens e o efeito que têm em nós.

Um filme de família no sentido pleno do termo, que nos mostra a importância das brincadeiras, da amizade, da transmissão de valores, da passagem do testemunho. Porque esse é o seu propósito: a continuidade. Um filme a ver, naturalmente, em família.

* Em complemento, passa a curta-metragem de animação “Dia & Noite” (2010), realizada por Teddy Newton.CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]


TOY STORY 3
Título original: Toy Story 3
Realização: Lee Unkrich
Vozes (versão original): Tom Hanks, Tim Allen, Joan Cusack, Ned Beatty, Don Rickles, Michael Keaton, Wallace Shawn, John Ratzenberger, Estelle Harris, John Morris, Jodi Benson, Laurie Metcalf, Emily Hahn
Vozes. (Versão dobrada): Miguel Ângelo, Paulo Figueiredo, Carmen Santos, José Raposo, Cucha Carvalheiro, Carlos Freixo, Carlos Macedo, Manuel Moreira, Adriano Luz, , Luís Lucena, Francisco Corte Real, Ana Vieira, Luz Fonseca.
EUA, 2010, 103 min.
Estreia em Portugal: 29 de Julho de 2010.
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SONHO E PESADELO

Os nossos sonhos são um mundo paralelo que interage com o mundo real? Se assim é, um pode influenciar o outro? É então possível manipular um através do outro? Questões que nos traz Christopher Nolan em “A Origem”, filme que realizou e escreveu, que tem sido um sucesso de bilheteira e gerado reacções diversas.

No mundo dos sonhos tudo nos é permitido e Nolan joga com isso para construir uma viagem mental profunda sobre a própria vida e as nossas decisões, os seus caminhos e as nossas opções, os seus paradoxos e mistérios. No plano técnico desta construção, o realizador tanto teve o bom senso de recusar o 3D, como de utilizar os efeitos especiais computorizados ao serviço do filme e não – como parece ser moda ultimamente – como seu objecto central.

A história passa-se num futuro próximo onde é possível entrar nos sonhos alheios e roubar ideias. Este método é bastante utilizado na espionagem comercial, o que levou à necessidade de sistemas de defesa contra tais intromissões. Mas o que vai ser proposto a Cobb (Leonardo DiCaprio) é algo diferente: a colocação de uma ideia na mente de alguém, para provocar um determinado resultado. Isto é considerado praticamente impossível, mas o protagonista aceita o trabalho mediante a perspectiva de resolução da sua vida e do reencontro com a sua família. Para este golpe, precisa de um arquitecto que construa o cenário onde se passará o sonho e descobre a jovem Ariadne (Ellen Page). O nome desta personagem não é inocente e a sua primeira prova de selecção é desenhar labirintos. Na mitologia grega, a filha de Minos, o rei de Creta, deu a Teseu um novelo de linha que lhe permitiu encontrar o caminho de volta do labirinto. O fio de Ariadne tornou-se depois um método lógico para a resolução de um problema. Parece que a chave está nesta referência ao labirinto, símbolo ancestral que remonta ao Neolítico, neste filme que sai dos simplismos habituais de Hollywood. Curiosa, também, no nome de uma das personagens, a recordação do grande mestre do xadrez Bobby Fischer.

Mas, considerações profundas à parte, era preciso fazer um ‘blockbuster’. Nolan não hesitou em aplicar a chapa do ‘heist movie’, com ritmo elevado, muita acção e referências que nos levam a trabalhos anteriores do realizador ou a filmes como “Matrix” (1999) e até “Ao Serviço de Sua Majestade” (1963). Este último vem-nos automaticamente à mente nas cenas na neve, passadas numa fortaleza de montanha, onde todo o ambiente bondiano se torna aborrecido, porque desnecessário. As cenas de tiros e explosões estão muito bem feitas e visualmente bem conseguidas, mas são exageradamente demoradas e prolongam demasiado o filme.

Lembre-se que este filme era um dos projectos de vida de Christopher Nolan e que teve todos os meios, técnicos e financeiros, para o realizar. O grau de exigência torna-se, assim, mais elevado. A fantástica ideia que é colocada neste trabalho não se desenvolve como se esperava. Mas será que isso alguma vez acontece? CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]



A ORIGEM
Título original: Inception
Realização: Christopher Nolan
Com: Leonardo DiCaprio, Joseph Gordon-Levitt, Marion Cotillard, Ellen Page, Tom Hardy, Ken Watanabe, Dileep Rao, Cillian Murphy, Tom Berenger, Michael Caine, Pete Postlethwaite
EUA/GB, 2010, 148 min.
Estreia em Portugal: 22 de Julho de 2010.
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CASA DE LOUCOS

O que sabemos da Grécia ultimamente não passa de notícias sobre a crise económico-financeira que atinge a Europa, mas eis que em pleno Verão nos chega o cinema contemporâneo grego, pela mão de Yorgos Lanthimos, realizador que conseguiu com esta sua segunda longa-metragem o prémio “Un certain regard” em Cannes e o grande prémio do Festival Internacional do Estoril, entre outros.

“Canino” não é um filme fácil. É uma experiência alucinante, violenta e perturbante que nos transporta a uma casa de loucos onde se vive uma realidade alterada. Um olhar sobre o controlo dos outros e a manipulação do discurso levado ao extremo. A acção passa-se na Grécia dos nossos dias, mas fica a percepção que poderia muito bem passar-se noutro local e noutro tempo.

O plano inicial, onde um velho leitor de cassetes “explica” que várias palavras têm significados diferentes daqueles que lhes conhecemos, é um verdadeiro mergulho de cabeça nesta história onde o pai mantém, com a cumplicidade da mulher, a sua família numa redoma fechada ao mundo exterior. Tudo se passa numa grande vivenda afastada da cidade onde filhos são isolados do mundo “perigoso” lá de fora por um domínio psicológico brutal, até estarem “preparados”. Nessa “preparação”, que não é mais do que uma parte importante do mecanismo de controlo, os filhos têm fazer jogos e tarefas, sendo premiados com pequenos autocolantes. Este sistema de recompensas lembra automaticamente a educação canina. Há aliás um paralelo entre um cão que a determinada altura sabemos que está a ser treinado numa escola especializada a pedido do pai e um dos “treinos” que este dá aos membros da família para se protegerem dos gatos – os “mais perigosos animais do mundo” –, pondo-os de gatas a ladrar.

Os filhos, cujos nomes nunca sabemos, conhecendo-os apenas por o irmão, a irmã mais velha e a mais nova, são jovens adultos com atitudes acriançadas. O rapaz tem o privilégio de satisfazer as suas necessidades sexuais com uma empregada de segurança que o pai traz da empresa onde trabalha. Mas o sexo com Christina é mecânico, serve aquele propósito e mais nada; não há paixão, nem emoção. Esta rapariga é, assim, um contacto com o mundo exterior e logo se tornará um problema.

Entre os filhos começa a subir a tensão. Apesar do medo criado sobre o mundo lá fora, a curiosidade aumenta. Os métodos de castigo e repreensão já não conseguem evitar todas as transgressões. Aqui está a grande questão do filme. Até que ponto se cria uma realidade para atingir determinados objectivos? Até onde deve uma família proteger-se?

Nesta desconstrução das realidades construídas o campo está aberto a todas as interpretações. Se do modelo familiar passarmos ao modelo de sociedade, e não necessariamente a totalitarismos passados – esses também mais ou menos mitificados –, encontramos hoje vários pontos em comum, das “operações de paz” à guerra das palavras “incorrectas”. Um filme de loucos, mas que dá que pensar. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]



CANINO
Título original: Kynodontas
Realização: Yorgos Lanthimos
Com: Christos Stergioglou, Michelle Valley, Aggeliki Papoulia, Mary Tsoni, Hristos Passalis, Anna Kalaitzidou
GR, 2009 94 min.
Estreia em Portugal: 29 de Julho de 2010.
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