O CRIME COMPENSA

Diz-nos a publicidade a “Inside Job” – título perfeito, mas infelizmente intraduzível – que este filme custou mais de 20 triliões de dólares a fazer. O pior é que esse dinheiro é de todos nós, melhor dizendo, de todos os afectados pela profunda crise económico-financeira que estoirou em 2008. Milhões de pessoas perderam os seus empregos, as suas casas e as suas poupanças. Como foi possível essa tragédia? Quais as suas origens? Quais os seus culpados? Algo foi feito para resolvê-la?

Este é um documentário corajoso que responde a estas questões de uma forma clara e acessível e incisiva, com o recurso a entrevistas, gráficos, títulos de jornais e imagens de arquivo. Tudo muito bem montado, em sequências bem ritmadas que nunca se tornam maçadoras e prendem a atenção do espectador e com a narração do actor Matt Damon.

O responsável por este trabalho de verdadeiro serviço público, isento e bem documentado, é Charles Ferguson que o realiza, produz e escreve. Ferguson é formado em Matemática e doutorado em Ciência Política. Profissionalmente foi empresário na área das novas tecnologias e entretanto passou ao cinema, onde se notabilizou com o documentário sobre a guerra do Iraque “No End in Sight” (2007). Para fazer este filme viajou pelo mundo questionando especialistas, políticos e alguns dos responsáveis pelo desastre financeiro, a quem não teve qualquer problema em colocar as perguntas mais difíceis. Alguns recusaram dar entrevistas e essa atitude é referida, outros ficam sem palavras, incomodados, enervados e há até quem peça para desligar a câmara.

Traçando um percurso desde que se abandonou o modelo financeiro tradicional americano, concretamente com a administração Reagan, mostra-nos como a alta finança começou a ser cada vez mais concentrada e poderosa, de tal forma que começou a dominar a política, independentemente de ser republicana ou democrata. Como é dito a determinada altura, o que existe é um “governo de Wall Street”.

Mas o que mais revolta é a impunidade generalizada que verificamos ao ver que os principais responsáveis continuam a fazer uma vida milionária, coleccionando mansões e jactos privados, ao mesmo tempo que recorrem a serviços de prostituição de luxo e ao consumo de cocaína. Tudo vale neste jogo de ganhar dinheiro à custa da miséria alheia.

A parte final do filme é bastante reveladora do que nos guarda o futuro. Apesar das boas intenções anunciadas pelo recém-eleito presidente Obama, a triste realidade é que nada, ou quase nada, se alterou. Aquele que se apresentava como apóstolo da “mudança”, afinal reconduziu ou colocou em lugares de topo vários responsáveis directos por um ‘meltdown’ nunca antes visto. Para reflectir e agir. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]




INSIDE JOB – A VERDADE DA CRISE
Título original: Inside Job
Realização: Charles Ferguson
Com: Matt Damon (narração)
EUA, 2010, 120 min.
Estreia em Portugal: 11 de Novembro de 2010.
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O MOSTEIRO

Quando há uns meses atrás “Dos Deuses e dos Homens” se estreou em França, rapidamente se tornou um fenómeno cultural e um êxito imediato de bilheteira, ultrapassando um milhão de espectadores nas duas primeiras semanas. Apesar de ter vencido o Grande Prémio do Festival de Cannes 2010 e recebido o aplauso da crítica, não deixa de ser surpreendente para um filme austero sobre monges.

No início dos anos 90 do século passado, na sequência da anulação das eleições que anunciavam uma vitória da Frente Islâmica de Salvação, começa a guerra civil argelina, também conhecida como a “década negra”, ou “do terrorismo”, que opôs o exército nacional a grupos islamitas armados. A história do filme situa-se em 1996, no centro desse conflito sangrento, e baseia-se no caso verídico do rapto e assassinato dos cistercienses do mosteiro de Tibhirine, nas montanhas do Atlas. Este enquadramento não é dado, tal como o importante papel desempenhado historicamente pelos mosteiros cristãos na Argélia, mas é essencial para se perceber melhor certas passagens.

Parece que o primeiro motivo da atracção desta obra, é o fascínio pela opção da reclusão monástica, em especial no mundo materialista e egoísta em que vivemos. Ao contrário dos excessos consumistas que nos rodeiam, os ascetas deste mosteiro prezam o silêncio, oram em conjunto, vivem da terra e ajudam a população local. Há algo de sedutor em todo este minimalismo, numa época de grandes efeitos especiais. Nota-se que o realizador deu uma especial atenção ao pormenor nas cenas passadas no mosteiro. Xavier Beauvois, que também foi co-argumentista, esteve sempre acompanhado por um especialista que o aconselhou, afirmando que “a dimensão documental é essencial”. Nas representações, destaque para as prestações de Lambert Wilson, no papel do irmão Christian, o líder, e de Michael Lonsdale, que encarna brilhantemente o terno irmão Luc, o médico que assiste todos sem excepções.

Perante a proximidade crescente da ameaça terrorista, instala-se nesta comunidade pacífica a dúvida sobre a permanência naquele local e o possível martírio. Mas esta esconde uma série de questões mais profundas, como a do papel de cada um no mundo e qual o significado das suas escolhas.

É impossível não pensar também na difícil relação da França com o seu passado colonial, no actual conflito com o islão que se vive agora em território francês e nos ataques de islamitas a cristãos que aumentam hoje em dia em todo o mundo.

Um bom filme que, ao que tudo aponta, poderá ser o representante francês na cerimónia dos Óscares da Academia, em Fevereiro do próximo ano, na nomeação para um Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]


DOS HOMENS E DOS DEUSES
Título original: Des Hommes et des Dieux
Realização: Xavier Beauvois
Com: Lambert Wilson, Michael Lonsdale, Olivier Rabourdin, Philippe Laudenbach, Jacques Herlin, Loïc Pichon, Xavier Maly, Jean-Marie Frin
FRA, 2010, 120 min.
Estreia em Portugal: 11 de Novembro de 2010.
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"GOSTO DISTO"

“Tens facebook? Eu procuro e depois adiciono-te como amigo.” Esta é a uma passagem de um diálogo que se tornou habitual nos dias que correm. As chamadas redes sociais na internet entraram nas nossas vidas e, quer queiramos quer não, muitas das nossas relações passam pelos computadores. É por isso que um filme que aborda a maior e mais bem sucedida dessas redes – daí o artigo definido no título, já que o facebook deixou de ser “uma” rede social, para se tornar “a” rede social – atrai sobre si toda a atenção do momento.

Aqui cruzam-se as histórias da génese do facebook e dos processos judiciais que se seguiram ao seu sucesso rápido, extraordinário, e principalmente milionário. Uma “seca”? Longe disso. Felizmente, o talentoso David Fincher está aos comandos. Este realizador norte-americano, que nos trouxe o profundo “Sete Pecados Mortais” (1997), o alucinante “O Jogo” (1995) e o magistral “Clube de Combate” (1999), continuando a mostrar a sua mestria em “Zodiac” (2007), consegue mais uma vez agarrar-nos ao ecrã com um trabalho impecável a um ritmo alucinante, onde tudo acontece à velocidade que Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg) escreve no teclado. Porque esta é a velocidade a que tudo aconteceu e acontece na era da internet e da informação ao momento.
Mas desengane-se que espera um filme documental sobre o facebook, o que aqui está em causa – como em qualquer rede social – são as relações humanas. Bem humanas, cara a cara, longe do relacionamento virtual, com zangas de melhores amigos, traições, desencontros amorosos, desilusões, ressentimentos. Esse é o prato forte e é por isso que, para mim, criticas à veracidade da história ou da personalidade de Zuckerberg não abalam este filme. Ainda por cima porque o argumento, redigido por Aaron Sorkin a partir do livro “The Accidental Billionaires” de Ben Mezrich, está muito bem escrito e alguns dos diálogos são pura e simplesmente notáveis.

Outro ponto muito interessante é a “viagem ao centro de Harvard”, nomeadamente ao choque entre dois mundos que lá co-existem: o dos génios e o dos descendentes das tradicionais famílias da elite norte-americana. Neste confronto as relações estão longe de ser fáceis e uma das coisas mais importante é o acesso a clubes restritos. Para conseguir entrar nesse mundo reservado, os alunos estão dispostos a passar por provas iniciáticas humilhantes. Mas os “nerds” que inventam todas estas novidades informáticas estão longe do estereótipo do “marrão”. Pelo contrário, são adolescentes de capacidades impressionantes, mas que estão muitas vezes bêbados, consumindo drogas ou em festas.

Esta é a nova elite norte-americana. De bilionários cada vez mais novos que ascendem a um patamar financeiro inimaginável num ápice, mas que mantêm uma irreverência infantil, como o demonstra, por exemplo, o cartão de visita de Mark Zuckerberg, que de início dizia “I’m CEO... bitch!”

Quando saí do cinema houve um pensamento que me passou pela cabeça: de certeza que toda a gente na sala tinha conta no facebook... [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]


A REDE SOCIAL
Título original: The Social Network
Realização: David Fincher
Com: Jesse Eisenberg, Andrew Garfield, Justin Timberlake, Joseph Mazzello, Armie Hammer, Max Minghella, Rooney Mara, Brenda Song
EUA, 2010, 121 min.
Estreia em Portugal: 4 de Novembro de 2010.
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