STONED


Pode julgar-se um livro pela capa? E um filme pelo elenco? Mesmo que as prestações dos actores sejam muito boas, é algo que só por si não basta para que o conjunto de elementos que constituem uma obra cinematográfica funcione. “Stone – Ninguém é Inocente” é uma demonstração prática disso.
O cartaz anuncia três estrelas de peso: Robert De Niro, Edward Norton e Milla Jovovich. A frase promocional aumenta-nos a curiosidade ao dizer que: “Algumas pessoas contam mentiras. Outras vivem-nas.” O ‘trailer’ faz-nos esperar um ‘thriller’ movimentado, que nunca chega a acontecer.

De início, a coisa promete. Ficamos a saber que há em Jack Mabry (Robert De Niro) um lado sombrio que contrasta com o agente de liberdade condicional à beira da reforma, com a imagem de funcionário e cidadão exemplar, que trabalha num estabelecimento prisional. A sua rigidez inabalável e o controlo do seu poder de decidir a quem pode abrir as portas para a liberdade antecipada vão ser postas em causa por Gerald Creeson (Edward Norton) – que anuncia prontamente que preferem que o tratem por “Stone”. O primeiro encontro entre ambos é um diálogo simplesmente formidável. Vendo que dificilmente convencerá Mabry a libertá-lo, “Stone” faz com que a sua mulher Lucetta (Milla Jovovich) o seduza e isso vai libertar um jogo de enganos, intenções cifradas e passados ocultos.

Como referi, de início parece que estamos a ver um ‘thriller’, mas o filme depressa parece tornar-se um exercício psicológico, para enveredar por um caminho metafísico, com uma tentativa de drama sobre o sentido da vida e a presença divina. O pior é que a realização reflecte esta confusa evolução, com uma construção atabalhoada e um ritmo incerto.

Voltando às representações, tenho que dizer que nos papéis principais estão dois dos actores norte-americanos, de diferentes gerações, que mais aprecio. O velho mestre De Niro continua em grande forma e apesar de tudo consegue proporcionar momentos maravilhosos, dos simples olhares aos estados de irritação. É incrível como consegue acrescentar sempre qualquer coisa às personagens. Não se limita a encarná-las, mas a conferir-lhes algo de próprio, que conseguimos identificar.

Por outro lado, Norton parece inicialmente uma antítese de Derek, o ‘skinhead’ de “América Proibida” (1998), também encarcerado. Desta vez é aquilo a que se chama (não simpaticamente) um ‘wigger’, ou seja um branco que se comporta como um negro, no vestir, no falar, no agir. Fenómeno que se espalhou dos EUA para o resto do Ocidente, tem no Michigan – estado onde se desenrola a acção deste filme –, especialmente em Detroit, grande incidência. É nestes opostos que se distingue, acima da capacidade, o talento de um actor.

“Stone”, pelo nome, podia ser uma pedrada, mas infelizmente pouco mais é que um inerte. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]

PLAMEGATE


Quem se lembra de Valerie Plame? Talvez só pelo nome seja difícil, mas para quem acompanhou o início da Segunda Guerra do Golfo, nomeadamente toda a operação de ‘marketing’ sobre a existência no Iraque de armas de destruição maciça (AMD), que justificavam mais uma intervenção estrangeira naquele país para, supostamente, lhe levar pela força a “liberdade iraquiana”, talvez se lembre do caso que inspira este filme.

Em 2003, a administração Bush, ansiosa por atacar o Iraque, manipulou as informações que tinha sobre a investigação acerca de um possível programa nuclear iraquiano para o fabrico de armamento. Nessa altura, Valerie Plame era uma operacional da CIA, especificamente na área de não-proliferação, cuja missão, entre outras, era garantir que o Iraque não tivesse acesso a armas nucleares. Muito bem relacionada no meio e profunda conhecedora dos movimentos comerciais, afirmou desde o início que os famosos tubos de alumínio comprados pelo Iraque não serviam para o enriquecimento nuclear. Ao mesmo tempo, começam a haver suspeitas de que o Iraque havia comprado quantidades significativas de urânio para produção nuclear, conhecido como ‘yellowcake’, ao Níger. A CIA contratou o antigo diplomata e embaixador Joe Wilson para investigar, que chegou à conclusão que tal era impossível. Quando se apercebeu que as suas investigações haviam sido ignoradas e até deturpadas, publicou um artigo no “New York Times” intitulado “O que eu não encontrei em África”, para repor a verdade.

O problema é que Wilson era marido de Valerie... O gabinete do vice-presidente Dick Cheney, nomeadamente através do seu conselheiro “Scooter” Libby, decidido a eliminar quem se opusesse à teoria das AMD, passou informações ao jornalista Robert Novak, do “Washington Times”, que publicou um artigo denunciando publicamente Valerie como agente. Aí começou um verdadeiro pesadelo.
“Jogo Limpo” é baseado tanto no livro de Valerie Plame, “Fair Game: My Life as a Spy, My Betrayal by the White House”, publicad em 2007 e em “The Politics of Truth. Inside the Lies that Led to War and Betrayed My Wife's CIA Identity: A Diplomat's Memoir”, da autoria do seu marido, publicado três anos antes.
Tal explica porque este filme, que poderia ser um belíssimo ‘thriller’ político se fique mais por um relato de vida e uma história sobre a “luta pela verdade”, bem ao estilo norte-americano.

Na realização, Doug Liman, que recentemente nos trouxe o interessante segundo filme da série Bourne, “Identidade Desconhecida” (2002), mas também o insuportável “Mr. e Mrs. Smith” (2005), cumpre sem arriscar. Esta é uma obra que assenta fundamentalmente nas excelentes representações dos dois actores principais, Naomi Watts e Sean Penn, e no interesse nesta história de uma mulher que por detrás de uma vida normal era uma espia, algo na realidade bem diferente do retratado em tanta ficção. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]

PRESO NO MOTIM


Por várias vezes me tenho queixado do inexplicável atraso com que certos filmes chegam às salas do nosso país e mais uma vez não posso deixar de referi-lo. Neste caso nem a proximidade geográfica nos valeu, já que “Cela 211” aparece finalmente por cá mais de um ano depois da sua estreia em Espanha. Escusado será lembrar as implicações comerciais destas opções, com os descarregamentos na internet ainda mais facilitados depois da saída o DVD.

Êxito cinematográfico no país vizinho, onde ultrapassou os dois milhões de espectadores e arrecadou oito prémios Goya, este ‘prison movie’ conquistou o público com o seu realismo e intensidade que prendem a atenção até ao final.

Juan Oliver (Alberto Ammann) é um guarda prisional que vai iniciar funções e quer causar boa impressão desde o princípio. Para tal, decide ir ao estabelecimento onde foi colocado na véspera do seu primeiro dia de trabalho para ver como tudo funciona. Durante a visita com dois colegas é atingido por um pedaço do tecto que lhe cai na cabeça. Inconsciente, é levado para a cela 211, quando ao mesmo tempo se desencadeia um motim na prisão. À frente desta onda de violência está o implacável Malamadre (Luis Tosar) e tudo se afigura aterrador para Juan. Mas o jovem funcionário, no desespero de sobreviver, decide tentar a única coisa que o pode salvar – fazer-se passar por um dos detidos. Este jogo arriscado vai-se tornando cada vez mais perigoso, ao mesmo tempo que Juan vai conquistando a confiança dos reclusos, do seu líder e subindo na hierarquia dos amotinados. Até aqui a história é interessante, mas podia não passar apenas disso. Felizmente, há um ‘twist’ que nos leva a pensar nas nossas motivações e em como estas podem mudar num ápice perante alterações de fundo. Quem somos realmente? O que conseguimos fazer?

No campo da representação, destaque natural para o notável trabalho de Luis Tosar no papel do carismático líder dos detidos. Este actor galego encarna muito bem Malamadre, personagem bem construída que reflecte um homem violento, duro e impiedoso, mas ainda assim seguidor de um código de honra próprio, cuja autoridade agressivamente mantida é reconhecida pelos demais. Referência também para Alberto Ammann que, tal como a sua personagem, se vai revelando ao longo do filme, proporcionando uma óptima evolução, essencial para a história.

Ao ver esta viagem ao mundo prisional espanhol, não pude deixar de recordar um filme de que aqui falei quando estreou no início deste ano. Trata-se de “Um profeta” (2009), do francês Jacques Audiard, um outro olhar sobre os cárceres europeus no qual há alguns pontos em comum interessantes. Há em ambos a presença de membros de grupos terroristas, mas o pormenor mais interessante é a actual composição étnica, nomeadamente os gangues provenientes da imigração que têm cada vez mais força e poder.

Um filme europeu com bastante acção e a capacidade de atrair o grande público, mas nem por isso a desprezar. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]

O EUROPEU


Se por ver o nome de George Clooney associado a um filme sobre um assassino profissional acha que encontrará em “O Americano” o habitual filme de acção de Hollywood, desengane-se. Este não é para as meninas que querem ver o galã, nem para os meninos que querem ver o engatatão. A frieza da sequência original, passada apropriadamente no clima gélido da Suécia, mostra que vamos entrar num mundo diferente.

Para sair dos ‘clichés’ cinematográficos deste género, a escolha do realizador não podia ter sido mais acertada. Anton Corbijn é um fotógrafo aclamado, desde há muito tempo ligado ao meio musical, que realizou vários telediscos e em 2007 nos concedeu uma verdadeira dádiva intitulada “Control”. Um filme fenomenal que é um relato tocante sobre o malogrado Ian Curtis, vocalista do grupo musical Joy Division, onde Corbijn revelou a sua mestria no grande ecrã.

É por isso que este “americano” é mesmo um “europeu”, com planos prolongados, sequências lentas, economia de diálogos e ausência de música desnecessária. Este último aspecto é bastante importante, já que confere ao filme uma dimensão muito diferente daqueles que na sua banda sonora desprezam o poder do silêncio. Em tudo isto há um ambiente ‘dark’, muito bem conseguido, que nos transporta a alguns ‘thrillers’ dos anos 70 do século passado. Nota ainda para o óptimo aproveitamento das magníficas paisagens da região de Abruzzo, opondo ao facilitismo de uma visão turística um olhar da terra.

Jack (George Clooney) é um assassino profissional em fuga que encontra esconderijo numa pacata povoação italiana. Durante o tempo que aí passa, começam a despertar dúvidas existenciais. Como lhe diz o seu enigmático protector num dos diálogos, “não costumavas ser assim”. Mas este homem duro e marcado por uma vida implacável e solitária tem ainda um trabalho, que deseja ser o último. Desta vez não tem que matar, mas transformar uma carabina para um assassinato que será cometido por outro. Aqui começa a revelar-se um artesão, um homem atento ao pormenor, ao mesmo tempo que a relação com uma prostituta evolui num sentido amoroso. Clooney encarna esta personagem com um desempenho profundo, a contrastar com os seus trabalhos mais ligeiros.

Apesar de este ser um filme substancialmente diferente, onde há Clooney tem que haver mulheres. Mas aqui, as três ‘belle’ que aparecem estão na casa dos trinta e, ao contrário da “beleza” artificial tão em voga, reflectem tipos europeus.

Uma das críticas que li e que reconheço é a do fraco argumento. No entanto, nem mesmo isso afecta grandemente a obra, porque por vezes há histórias na (de?) vida que são previsíveis e iguais a tantas outras. Um filme a apreciar. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]