O que sabemos da Grécia ultimamente não passa de notícias sobre a crise económico-financeira que atinge a Europa, mas eis que em pleno Verão nos chega o cinema contemporâneo grego, pela mão de Yorgos Lanthimos, realizador que conseguiu com esta sua segunda longa-metragem o prémio “Un certain regard” em Cannes e o grande prémio do Festival Internacional do Estoril, entre outros.
“Canino” não é um filme fácil. É uma experiência alucinante, violenta e perturbante que nos transporta a uma casa de loucos onde se vive uma realidade alterada. Um olhar sobre o controlo dos outros e a manipulação do discurso levado ao extremo. A acção passa-se na Grécia dos nossos dias, mas fica a percepção que poderia muito bem passar-se noutro local e noutro tempo.
O plano inicial, onde um velho leitor de cassetes “explica” que várias palavras têm significados diferentes daqueles que lhes conhecemos, é um verdadeiro mergulho de cabeça nesta história onde o pai mantém, com a cumplicidade da mulher, a sua família numa redoma fechada ao mundo exterior. Tudo se passa numa grande vivenda afastada da cidade onde filhos são isolados do mundo “perigoso” lá de fora por um domínio psicológico brutal, até estarem “preparados”. Nessa “preparação”, que não é mais do que uma parte importante do mecanismo de controlo, os filhos têm fazer jogos e tarefas, sendo premiados com pequenos autocolantes. Este sistema de recompensas lembra automaticamente a educação canina. Há aliás um paralelo entre um cão que a determinada altura sabemos que está a ser treinado numa escola especializada a pedido do pai e um dos “treinos” que este dá aos membros da família para se protegerem dos gatos – os “mais perigosos animais do mundo” –, pondo-os de gatas a ladrar.
Os filhos, cujos nomes nunca sabemos, conhecendo-os apenas por o irmão, a irmã mais velha e a mais nova, são jovens adultos com atitudes acriançadas. O rapaz tem o privilégio de satisfazer as suas necessidades sexuais com uma empregada de segurança que o pai traz da empresa onde trabalha. Mas o sexo com Christina é mecânico, serve aquele propósito e mais nada; não há paixão, nem emoção. Esta rapariga é, assim, um contacto com o mundo exterior e logo se tornará um problema.
Entre os filhos começa a subir a tensão. Apesar do medo criado sobre o mundo lá fora, a curiosidade aumenta. Os métodos de castigo e repreensão já não conseguem evitar todas as transgressões. Aqui está a grande questão do filme. Até que ponto se cria uma realidade para atingir determinados objectivos? Até onde deve uma família proteger-se?
Nesta desconstrução das realidades construídas o campo está aberto a todas as interpretações. Se do modelo familiar passarmos ao modelo de sociedade, e não necessariamente a totalitarismos passados – esses também mais ou menos mitificados –, encontramos hoje vários pontos em comum, das “operações de paz” à guerra das palavras “incorrectas”. Um filme de loucos, mas que dá que pensar. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]
CANINO
Título original: Kynodontas
Realização: Yorgos Lanthimos
Com: Christos Stergioglou, Michelle Valley, Aggeliki Papoulia, Mary Tsoni, Hristos Passalis, Anna Kalaitzidou
GR, 2009 94 min.
Estreia em Portugal: 29 de Julho de 2010.
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