O amigo do Rei


“O Discurso do Rei” tem todos os ingredientes para ser um sucesso comercial. É um ‘biopic’ de uma figura da realeza britânica, passado num ambiente histórico e baseado em factos reais. Rapidamente se tornou um dos favoritos aos Óscares, tendo sido nomeado para doze categorias, incluindo a de melhor filme e a de melhor realização.

Tom Hooper, que já havia experimentado o género histórico com as mini-séries “Elizabeth I” (2005) e “John Adams” (2008), realiza um filme mais íntimo, longe de uma grandeza que alguns esperariam, por se passar num período crucial na História da Europa.

Nos anos 30 do século XX, na iminência da Segunda Guerra Mundial, o poder da rádio revela-se da maior importância para a afirmação do soberano perante as massas. A seguir à gravação de uma mensagem de Natal, o rei Jorge V tem um diálogo com o seu segundo filho, o príncipe Alberto, duque de York, no qual chegam à conclusão de que se “tornaram actores”... A rádio é considerada por muitos, à época, como uma verdadeira “caixa de Pandora”, mas é impossível ignorá-la.

No entanto, o príncipe é atormentado pela sua gaguez desde criança, algo que agora se revela um problema ainda maior. A duquesa incita-o a consultar todos os especialistas da área, mas sem êxito. Finalmente, decide recorrer a um terapeuta da fala australiano, cujos métodos são no mínimo estranhos e incluem palavrões e exercícios físicos.

Com a morte do seu pai e a abdicação do seu irmão, o futuro Jorge VI depende directamente de Lionel Logue (Geoffrey Rush) para ultrapassar o seu impedimento de comunicação. Durante os tratamentos desenvolve-se entre ambos uma intimidade que resultará numa amizade profunda. Mas até aí chegar, o caminho será sinuoso. Para além da distinção de classe entre um membro da família real e um súbdito, Logue é um “aussie”, um “colonial”, algo que o situa na base da estrutura social da altura. Por outro lado, este terapeuta excêntrico apercebeu-se pela experiência que a gaguez tem causas psicológicas e consegue entrar na traumatizante adolescência de um príncipe que está longe de ser uma “história de princesas”.

O papel de Jorge VI, notoriamente difícil, é esplendidamente representado por Colin Firth, bem acompanhado pelos desempenhos de Geoffrey Rush e de Helena Bonham Carter.

Esta é uma história de um homem que ultrapassa uma adversidade que o parecia limitar para sempre, para chegar a um desafio ainda maior. Depois de assistir, em família, ao pequeno filme noticioso da sua coroação, Jorge VI vê imagens de um discurso de Adolf Hitler. Uma das filhas pergunta-lhe o que ele está a dizer, ao que o rei responde: “Não sei... mas está a dizê-lo muito bem”. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]

O LADO NEGRO

O primeiro filme de Darren Aronofsky que vi foi “A vida não é um sonho” (2000), uma viagem alucinante ao vício e à espiral descendente da degradação humana e nunca mais esqueci o nome deste realizador. Anos depois, em 2008, voltaria a surpreender com o excelente “Wrestler”, onde Mickey Rourke interpretou magistralmente um lutador em fim de carreira. Foi, assim, com certa expectativa que vi “O Cisne Negro”, filme que levou Aronofsky de novo ao mundo do espectáculo e suscitou críticas antagónicas, quase numa oposição amor/ódio.

A história desenrola-se em Nova Iorque, no seio de uma companhia de ‘ballet’. Preparando o início da nova temporada, o director, Thomas Leroy (Vincent Cassel), faz um ‘casting’ para a escolha da substituta da anterior estrela, Beth MacIntyre (Winona Ryder). Nesta produção de “O Lago dos Cisnes”, a protagonista tem que desempenhar tanto o papel de Cisne Branco como o de Cisne Negro. A jovem e dedicada Nina Sayers (Natalie Portman) desperta a atenção do director, pela sua técnica e desempenho como Cisne Branco. No entanto, ele hesita em seleccioná-la, duvidando que ela consiga ultrapassar a sua rigidez para atingir a paixão necessária para representar o Cisne Negro.

Ela acaba por conseguir o lugar, para grande felicidade da sua mãe omnipresente e controladora da sua carreira. Mas o caminho para a revelação do seu “lado negro” está longe de ser fácil. A tensão entre ela e Thomas cresce, ao mesmo tempo que, como uma sombra, uma bailarina recém-chegada à companhia, Lily (Mila Kunis), a começa a atormentar.

Esta busca desse lado mais solto, mais apaixonado, há que largar certas restrições. Romper com a rapariga “certinha” e dar asas ao sentimento. Este processo implica uma perda da inocência. Uma transformação. O romper com uma ordem estabelecida.

Tudo isto se passa ao som de uma banda sonora baseada na obra de Tchaikovsky, no ritmo gracioso do bailado e com uma representação de suster a respiração por parte de Natalie Portman. Alguma da crítica falou de ‘overacting’, mas na minha opinião ela encarna perfeitamente a personagem.

Na realização, Aronofsky continua com a sua “câmara ao ombro” que funciona muito bem. O mesmo não se pode dizer quando descai para um registo mais próximo do terror. A coisa não sai bem e era melhor ter-se mantido no ‘suspense’ puro e duro. Por falar nisso, há na história um jogo de espelhos que é transposto literalmente para a tela. As alucinações de Nina são, assim, sentidas pelo público.

Todo este tormento é uma transformação. Todo este percurso é uma busca da perfeição. Esta é a mensagem do filme. Até onde estamos dispostos a ir pela perfeição? O que estamos dispostos a mudar para atingir um fim? Mesmo que esse seja o nosso lado negro... [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]

ALÉM


Existe vida depois da morte? É possível comunicar com os que já partiram? São perguntas que o Homem tem feito ao longo dos tempos e que não perdem a actualidade. Este é um tema polémico e, pior ainda, muito dado a lamechices e charlatanices. Daí que ver Clint Eastwood debruçar-se sobre este assunto desperta, no mínimo, a curiosidade dos cinéfilos.

Reza a história que Steven Spielberg conseguiu que Eastwood lesse o argumento de Peter Morgan e se decidisse a fazer este filme que estava na calha há algum tempo. Será porque o realizador, agora octogenário, se preocupa mais com a morte? Interrogações a deixar aos especuladores habituais…

Nesta “Outra Vida”, são apresentadas três histórias que logo se percebe que se vão inevitavelmente cruzar. Por um lado temos a personagem mais bem conseguida, George Lonnegan (Matt Damon), um homem simples que consegue comunicar com o além e que já fez disso negócio com a ajuda do irmão interesseiro. Considera que o seu “dom” é na realidade uma maldição que o impede de levar uma vida normal. Abandonou as “leituras” e prefere trabalhar como operário. No entanto, não é tão fácil assim fugir do seu talento. Depois, há os dois gémeos ingleses de 12 anos, Marcus e Jason (Frankie e George McLaren), que vivem com a mãe drogada e alcoólica, controlada pelas autoridades. Jason morre atropelado e o irmão não descansa enquanto não consegue entrar em contacto com ele. Essa busca proporciona alguns momentos engraçados quando Marcus consulta certos charlatães que abundam neste meio. Por fim, a personagem mais fraca, Marie Lelay (Cécile de France), uma jornalista francesa com uma carreira de sucesso e a quem a vida corre de feição, que sobrevive a um ‘tsunami’ enquanto está na Tailândia. Essa experiência de quase-morte vai alterá-la para sempre e fá-la iniciar uma pesquisa sobre as provas científicas de que é possível comunicar com o além.

A fantástica cena do ‘tsunami’, que abre o filme, está muito bem conseguida e realizada. Confere alguma espectacularidade sem cair no exagero. É para isto que servem os efeitos especiais.

Quanto ao lado politicamente incorrecto de Clint, não deixa de aparecer, ainda que pontualmente. É o caso do atentado no metro de Londres ou a cena em que a professora de Marcus o manda tirar o boné dentro da aula, quando ao seu lado está uma rapariga muçulmana trajando o seu ‘hijab’…

Por último, foi na conferência de imprensa dada no New York Film Festival, em Outubro do ano passado, aquando da estreia deste filme, que Clint Eastwood referiu o nosso mestre cinematográfico Manuel de Oliveira. Disse ele: “há aquele realizador português que tem mais de cem anos e continua a fazer filmes. Eu tenciono fazer a mesma coisa!” Esperemos que sim. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]