VIAGEM A OUTRO MUNDO


O “Complexo do Alemão” é um conjunto de favelas na zona norte do Rio de Janeiro conhecido pela sua dimensão, pelo tráfico e, em especial, pela extrema violência. O mundo das favelas brasileiras sempre gerou grande curiosidade, mas depois do excelente “Tropa de Elite” (2007), de José Padilha, ganhou um mediatismo colossal. No final do ano passado, a enorme operação militar que se seguiu à série de ataques e atentados perpetrados pelos traficantes cariocas foi amplamente televisionada. Os telejornais abriam com verdadeiros cenários de guerra na “cidade maravilhosa”, que um dia foi capital de Portugal, e as imagens de soldados armados protegidos por blindados a subir os morros mostravam que não se tratava de um mero caso de polícia.

O documentário português “Complexo – Universo Paralelo”, que está agora em cartaz, beneficia muito de toda essa publicidade. Muita da sua promoção e até o próprio ‘trailer’ põem a ênfase nos “bandidos” e na violência. Mas atenção, o filme está longe de ser um exercício de câmara oculta ou uma colecção de imagens explícitas de combate urbano. Reparei que na estreia muita gente esperava algo do género e saiu claramente desiludida. Esta verdadeira viagem a outro mundo, o “universo paralelo” anunciado no título, é antes um olhar para a vida dos habitantes do Complexo.

Os irmãos Mário e Pedro Patrocínio, respectivamente o realizador e o director de fotografia do filme, chegaram ao Complexo do Alemão em 2005 depois de um convite para fazer um teledisco do músico de ‘funk’ MC Playboy. Essa experiência levou-os a frequentar a favela e a realizar várias entrevistas com moradores que captassem as várias realidades e histórias locais. Desse conjunto escolheram quatro personagens representativas. Opróprio MC Playboy, “funkeiro” que é um símbolo cultural da comunidade, preocupado mais com a consciência social que com o crime. Seu Zé, uma espécie de ancião respeitado e influente, que preside à Associação de Moradores e é um conhecedor profundo desta favela que viu crescer. Dona Célia, uma mãe de oito filhos que sobrevive graças à sua “é em Deus”, como ela diz, mas também a uma capacidade de resistência incrível. Vende embalagens para reciclagem para evitar que a família passe fome, incluindo o marido alcoólico que passa a maior parte do dia deitado. Nota-se que é a personagem central, uma imagem paradigmática do ambiente familiar na favela e um exemplo de perseverança. Por fim, os traficantes, jovens que tapam a cara e mostram as suas espingardas automáticas, afirmando estar preparados para tudo, que é como quem diz, a guerra com a polícia.

Os militares por seu turno são filmados como parte da paisagem. Farda camuflada, capacete e arma em punho, normalmente nas esquinas, a controlar os movimentos. A fazer lembrar, por exemplo, soldados israelitas numa operação na Faixa de Gaza.

Um filme bem construído que sai da reportagem sobre troca de tiros, mas que também podia ter ido mais longe. Um olhar interessante sobre um sentimento de fronteira entre dois mundos: o das favelas e o lá de fora. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]

UMA HISTÓRIA DE AMOR


No mês seguinte à instauração da república em Portugal, morria um dos grandes mestres das letras russo, Lev Tolstoi, autor de inúmeras obras, entre as quais “Guerra e Paz” ou “Anna Karenina”, mas também inspirador do movimento tolstoiano de cristãos anarquistas.

É exactamente sobre os últimos tempos da vida de Tolstoi que trata “A Última Estação”, longa-metragem realizada por Michael Hoffman, que também escreveu o argumento a partir do romance homónimo de Jay Parini, publicado em 1990.

O filme debruça-se especialmente sobre a questão da cedência dos direitos de autor de Tolstoi ao domínio público, tal como queria Vladimir Chertkov (Paul Giamatti), amigo do escritor e fundador dos Tolstoianos. Tais intenções iam contra a vontade da mulher de Tolstoi, a condessa Sophia Tolstaya, interessada em garantir os rendimentos familiares e um estilo de vida aristocrático. Esta disputa vai pôr em causa a relação e o amor entre Tolstoi e a sua esposa e gerar inúmeros conflitos dentro da família e do movimento.

A meio deste turbilhão surge um novo elemento, Valentin Bulgakov (James McAvoy), recém-nomeado secretário de Tolstoi, seguidor dos seus ensinamentos e grande admirador da sua obra. Privando tanto com o escritor como com a sua mulher, a sua fidelidade acaba por ser dividida e tenta, dentro do possível, atenuar a tensão.

Apesar de tolstoiano, Bulgakov começa a interrogar-se sobre várias das posições do movimento e atitudes dos seus dirigentes, ao mesmo tempo que se apaixona por Masha (Kerry Condon), outra tolstoiana com dúvidas. Mas é o próprio Tolstoi que faz com que Bulgakov se questione, quando por exemplo lhe diz, depois de contar peripécias de juventude, “eu não sou lá um grande tolstoiano”.
Essa é talvez a parte mais interessante desta história, a reflexão sobre a concretização de um movimento e a vontade e posição da sua figura de referência. Até que ponto os seguidores o seguem realmente? Serão, como reza o ditado popular, mais papistas que o Papa?

Neste filme de época, com uma realização que cumpre, há a destacar as soberbas interpretações dos dois protagonistas Christopher Plummer, no papel de Tolstoi, e Helen Mirren, no papel de Sophia Tolstaya, que lhes valeram nomeações para os Óscares.

Por fim, para aqueles impacientes que saltam das cadeiras mal acaba a acção, chamo a atenção para não o fazerem. Durante o filme vemos que Tolstoi estava constantemente a ser filmado no seu dia-a-dia, o que gera uma curiosidade natural em ver as imagens originais. Acontece que essa curiosidade é satisfeita, pois várias dessas passagens acompanham os créditos finais. Uma oportunidade para comparar com o que acabámos de ver. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]

SIMPLESMENTE MÁGICO


Para muitos, esta altura é a indicada para ir ao cinema ver filmes de animação em família. Todos eles, claro, de produção norte-americana e na sua maioria muito (demasiado?) movimentados, cheios de efeitos estrondosos, ambientes futuristas e, ultimamente, condenados ao 3D. Felizmente, há vida para além disso…

Que belíssima surpresa é encontrar nas salas nacionais uma obra de animação cinematográfica europeia, mais concretamente franco-britânica, dirigida por um realizador talentoso como Sylvain Chomet, que nos maravilhou com “Belleville Rendez-vous” (2003). Se tudo isto não for suficiente, acrescente-se que este filme é baseado num argumento original de Jacques Tati e traz-nos uma história simples mas tocante.

Foi a filha de Tati, Sophie Tatischeff, que levou Chomet a este argumento que o seu pai escrevera com Henri Marquet em finais dos anos 50 do século passado. A história era demasiado pessoal e, supostamente, para ser representada por ela e por Tati. Contava-nos o fim de carreira de um ilusionista francês que, fazendo espectáculos em locais decadentes para sobreviver, acabava por ir para Praga, onde encontrava uma rapariga que acredita na sua magia e com quem desenvolve uma relação pai-filha, mudando a sua vida. Sophie acabou por achar que esta “carta de amor” do seu pai ficaria bem em versão animada e que Chomet era a pessoa certa para o fazer. Ela morreu antes de o realizador ter iniciado o projecto, mas os responsáveis pelo espólio de Tati mantiveram a autorização.

Há que referir uma controvérsia à volta das intenções originais, suscitada pela filha mais velha de Tati, Helga Marie-Jeanne Schiel, ainda viva, que afirmou que esta era uma tentativa de reconciliação do seu pai com ela. Chomet discorda e disse que nunca chegou a conhecer Sophie, mas que pensava que Tati o havia escrito para ela devido à culpa que sentia por estar afastado dela enquanto trabalhava.

Voltando a este “Mágico”, não é só nas semelhanças físicas do ilusionista do filme que vemos o próprio Tati. Este tem mesmo o seu nome completo: Tatischeff. No entanto, há mais nesta personagem do que a sua reprodução mimética.

Nesta versão, Chomet trocou a Checoslováquia do argumento original pela Escócia onde tem o seu estúdio, mas a visão poética e melancólica sobre a passagem do tempo nada perde com isso. Edimburgo proporciona até um duplo ‘cameo’, quando Tatischeff entra num cinema e vê projectado o filme de Tati “O Meu Tio” (1958). Esse cinema existe ainda hoje e chama-se Cameo.

A opção da animação tradicional, com um recurso mínimo ao digital, confere uma autenticidade ao filme que é profundamente sentida. Os escassos diálogos, as pequenas imperfeições das personagens, as magníficas paisagens, os pormenores, o movimento compassado, podem ser apreciados nesta obra que se desenrola tal e qual como o tempo da história que conta. Uma passagem do tempo intemporal. Para ver e rever. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]