OS DEUSES DEVEM ESTAR LOUCOS

“Choque de Titãs”, realizado em 1981 por Desmond Davies, foi um dos filmes que me marcou na infância. Confirmou o meu gosto pelas aventuras épicas e despertou a minha curiosidade para a mitologia clássica. A luta heróica contra todas as adversidades, em especial contra os monstros criados pelo talentoso Ray Harryhausen, conquistou a minha admiração. Ainda hoje, apesar das devidas distâncias, continuo a tê-lo em consideração, tendo-se tornado de culto.

Foi este precedente que me levou a ver o “remake” dirigido por Louis Leterrier – responsável pela desilusão chamada “O Incrível Hulk” (2008) –, não à espera de grande surpresa, mas quase como obrigação. Apesar de contar com alguns actores de peso, o filme deixa de lado as actuações e quase também a história, a favor dos exagerados efeitos especiais. É uma sina da maior parte do dito cinema de acção que se faz hoje em dia.

Mas mesmo nos efeitos, apesar das possibilidades, esta versão pouco traz de novo, já que insiste nos escorpiões gigantes e no Kraken do original, que aliás nada têm que ver com a mitologia grega. É para recordar, nova e insistentemente, que a tecnologia por mais avançada que seja continua a precisar de imaginação e talento criativo.

Para os fãs do “Choque” de 1981, há um brinde. Antes de Perseu partir na sua demanda, ao escolher o material bélico a levar, pega em Bubo, a coruja mecânica que apareceu nesse filme, e pergunta: “O que é isto?” Um dos soldados diz-lhe simplesmente para a deixar para trás. Trata-se de um “cameo” engraçado, mas que acaba por ser como uma pastilha de menta numa refeição estragada.

Esta história da revolta dos homens contra os deuses e da intriga entre eles, que contará com um semi-deus para finalmente vencer o enorme monstro marinho com o auxílio precioso da cabeça cortada da Medusa, depois de todas as outras provas, é contada de uma forma saltitante e sem um fio condutor.

A prestação dos actores deixa muito a desejar, para não dizer pior. Liam Neeson e Ralph Fiennes, por exemplo, que representam Zeus e Hades, respectivamente, são um desastre. Também a caracterização, em especial dos deuses e do Olimpo, é simplesmente pavorosa, a puxar para o tristemente (tragicamente?) cómico.

É realmente pena que não seja possível transmitir a dimensão intemporal desta história, sem cair na tentação de fazer “entretenimento”. Seria perfeitamente possível e bastante desejável mostrar a importância dos clássicos e do espírito trágico. Essa postura que comandou o homem europeu sempre mais além, mesmo quando conhecia de antemão o seu destino desfavorável.

Lembro-me daquela máxima trágica: “Não é necessário ter esperança para empreender, nem ter êxito para preservar”. Como necessitamos desse espírito hoje… [publicado na secção CineMais da última edição de «O Diabo»]



CONFRONTO DE TITÃS
Título original: Clash of the Titans
Realização: Louis Leterrier
Com: Sam Worthington, Liam Neeson, Ralph Fiennes, Jason Flemyng, Gemma Arterton, Mads Mikkelsen, Luke Evans
EUA/RU, 2010, 106 min.
Estreia em Portugal: 15 de Abril de 2010.
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