DE PASSAGEM

A América que nos chega a casa diariamente é a da “terra das oportunidades”, do espectáculo, da abundância e do desperdício. Um novo centro do mundo, a hiperpotência que influencia todo o planeta. No cinema, a imagem desta América é, por excelência, Hollywood e as suas grandes produções. Mas, por detrás desta tela, há um país profundo, um mundo onde também há pobreza e extremas dificuldades. Também há outro cinema – independente –, felizmente cada vez mais divulgado entre nós, onde encontramos boas surpresas. É o caso de “Wendy e Lucy”, cuja estreia foi há dois anos no Festival de Cinema de Cannes.

Wendy (Michelle Williams) é uma rapariga que está “on the road” com a sua cadela Lucy e o pouco dinheiro contado. O seu destino é o Alaska, referido quase como “terra prometida”, onde espera encontrar um emprego. Ainda no Oregon, o seu carro avaria-se forçando-a a parar até tentar resolver o problema, mas as coisas precipitam-se. A sua débil situação financeira leva-a a furtar duas latas de comida para cão num supermercado para alimentar Lucy. É apanhada, detida e forçada a deixar a sua companheira canina presa à porta da loja. Quando regressa da esquadra, ao fim de longas horas, não encontra a sua amiga e começa a desesperar.

A história deste filme é a de uma busca motivada pela amizade. Da forma como esse sentimento se torna um compromisso do qual se não pode desistir, por muito difíceis que se tornem as coisas. Uma jornada por um mundo que funciona a dinheiro, com apenas uns tostões no bolso e que vão desaparecendo rapidamente.

Michelle Williams, que tem um excelente desempenho, é o centro do filme e vai-se cruzando com várias personagens fugazes que preenchem bem toda a acção. Como a sua personagem afirma por várias vezes: está “só de passagem”. O trabalho de Kelly Reichardt, que regressa ao mesmo estado onde filmou “Old Joy” (2006), é bastante bom e são de notar os planos fantásticos no supermercado – uma extraordinariamente bem conseguida oposição consumismo/necessidade.

Esta é uma reflexão norte-americana, a lembrar que momentos como a Grande Depressão também fazem parte daquele país. Uma viagem pessoal sobre a vida, o nosso caminho, a solidariedade, a amizade e as decisões a que somos levados. Em tempos de crise, é bom lembrar que para os gregos antigos “krisis” significava exactamente “decisão”, mas num momento conturbado, especialmente provocado por factores exógenos, onde tudo era possível

Uma estreia a saudar, já que traz o cinema independente norte-americano às salas portuguesas, que só peca por tardia. Uma obra a mostrar que uma história simples também dá um bom filme. Um filme sobre os valores e a sua importância quando tudo o resto falta e que nos obriga a questionar certezas que tínhamos por inabaláveis. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]



WENDY & LUCY
Título original: Wendy and Lucy
Realização: Kelly Reichardt
Com: Michelle Williams, Will Patton, Will Oldham, John Robinson
EUA, 2008, 80 min.
Estreia em Portugal: 3 de Junho de 2010.
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