CASA ASSOMBRADA

“O Escritor Fantasma” é uma verdadeira casa assombrada cheia de fantasmas. O primeiro é o realizador. Polanski, a braços com a justiça norte-americana devido a um caso de abuso sexual de uma menor há vários anos, ficou impossibilitado de regressar aos EUA. Esta situação gerou muita polémica, nomeadamente devido à solidariedade de várias celebridades do mundo do espectáculo, que com certeza teriam outra atitude se se tratasse de um dos tantos casos de pedofilia que diariamente enchem a imprensa. Mas há que ter a honestidade de separar as águas, já que a única influência que essa situação tem no filme até é benéfica, pois há claras semelhanças no isolamento e na fuga à justiça que seguramente o inspiraram.

O fantasma mais importante do filme é o que lhe dá o título, um escritor do qual nunca sabemos o nome durante toda a acção, extraordinariamente representado por Ewan McGregor, com a ingenuidade e sinceridade imprescindíveis. Ao ser contratado para redigir na sombra as memórias de um antigo primeiro-ministro britânico – interpretado por Pierce Brosnan, a quem o papel assenta que nem uma luva –, que nos recorda automaticamente Tony Blair, começa a perceber que nem tudo é tão simples e fácil como inicialmente aparentava.

Levado para uma casa que se adivinha ser em Martha’s Vineyard, apesar de ter sido filmada na Alemanha pelas impossibilidades referidas acima, transmite-nos o sentimento de clausura nesta magnífica arquitectura sóbria e ao mesmo tempo tão fria como o mar gelado que vemos lá fora através das paredes em vidro. Aí, a dúvida instala-se e o mistério adensa-se. O fantasma seu antecessor morreu afogado e ele começa a suspeitar de assassinato. Ao mesmo tempo, o primeiro-ministro é acusado pelo Tribunal Penal Internacional e faz tudo para aparentar calma e normalidade. Espionagem, conspiração de opositores políticos, interesses ocultos, movimentações de bastidores – os ingredientes estão todos neste argumento baseado num romance de Robert Harris, que o adaptou ao cinema em conjunto com Polanski.

A história faz-nos recuar até um passado recente: a administração Bush, a Guerra contra o terrorismo, a invasão do Iraque, os voos secretos da CIA, etc. Nesta viagem pelos caminhos sinuosos das altas esferas do poder internacional, temos “flashes” de trabalhos anteriores do realizador e também do mestre Hitchtcock. Mas o que está maravilhosamente bem conseguido é a atmosfera “noir” em que tudo se passa. E não é nada “retro”, pelo contrário, encaixa impecavelmente com um filme dos nossos dias.

Um “thriller” muitíssimo bem construído, onde o cineasta vai levantando véu a véu uma intriga internacional profunda, sempre com uma intensidade que nos agarra à tela durante toda a acção. Onde os actores, talentosamente dirigidos, nos oferecem personagens que se vão revelando ao longo de todo um percurso findo o qual regressamos mentalmente aos pormenores apontados na memória e vemos que estava tudo lá, à espera de ser descoberto. Esta excelente casa assombrada é, sem dúvida, um assombro a não perder. [publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]




O ESCRITOR FANTASMA
Título original: The Ghost Writer
Realização: Roman Polanski
Com: Ewan McGregor, Kim Cattrall, Olivia Williams, Pierce Brosnan, Timothy Hutton, Tom Wilkinson, Robert Pugh, James Belushi, David Rintoul, Eli Wallach
FRA/ALE/RU, 2010, 128 min.
Estreia em Portugal: 15 de Julho de 2010.
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