QUEBRAR A ROTINA

Se há não muito tempo o cinema que se faz noutras paragens raramente chegava a Portugal, agora há que reconhecer que chega cada vez mais. No entanto, uma das características negativas é o tempo que tais filmes demoram a estrear entre nós. É o caso de “Whisky”, uma produção de 2004 – ano em que foi distinguido com o Prémio da Crítica no Festival de Cinema de Cannes –, onde o atraso ultrapassa o limite do razoável.

Este é um filme que nos leva a Montevideo, no Uruguai, mais concretamente a uma fábrica de meias que parece ter parado no tempo. Todos os dias, Jacobo Köller, um dos tantos judeus de apelido germânico que vivem na América do Sul, abre a porta do velho negócio da família na presença da mais antiga das suas três funcionárias. Marta, a sua fiel assistente, acompanha-o nos rituais matinais de pôr a pequena fábrica a trabalhar.

A acção é demorada, com poucos e curtos diálogos e necessariamente repetitiva. Pode até parecer aborrecida, de início, mas é essencial para captar as vidas de pessoas iguais a tantas outras com quem nos podemos cruzar na rua. Para detectar como o dia-a-dia destas formigas humanas se assemelha na sua mecânica ao trabalhar de uma máquina de coser ou de toda uma fábrica.

Mas algo vai perturbar esse regular funcionamento. A visita de Herman, o irmão de Jacobo, a propósito da morte recente da mãe de ambos, vai fazer com que este simule estar casado com Marta. Esta encenação, devida ao sucesso de Herman, que modernizou a sua fábrica do mesmo ramo no Brasil e mostra orgulhoso a fotografia das filhas, vai suscitar várias questões.

O quebrar da rotina, tão desconfortável para Jacobo, levanta as dúvidas sobre as opções de vida de cada um. É um reencontro familiar no verdadeiro sentido, com os fantasmas do passado, os incómodos do presente e as dúvidas do futuro. É ainda possível mudar?

Há uma cena em que Marta mostra a Herman uma habilidade que diz ter desenvolvido quando estava enfadada: a de conseguir dizer as palavras de trás para a frente. Parece que nesta brincadeira engraçada está uma reflexão mais profunda. Será que perante uma vida de aborrecimento podemos ainda inverter as coisas? Mesmo que essa mudança não tenha um significado imediato e que seja inesperada? Mas a interrogação mais importante de todas – e que paira na cabeça de todos nós –, não é a de se podemos mudar, mas antes se realmente o queremos.

Lembro-me daquela história onde, num grupo de amigos, perante a clássica “o que fariam se ganhassem a lotaria?”, um diz que concretizaria um sonho, outro imagina compras extravagantes, mas há um que simplesmente responde que continuaria a trabalhar no mesmo sítio.

* Antecedendo este filme nas salas nacionais, passa em complemento a curta-metragem de animação portuguesa “A Dama da Lapa”, realizada por Joana Toste, em 2004.
[publicado na secção CineMais da edição desta semana de «O Diabo»]



WHISKY
Título original: Whisky
Realização: Juan Pablo Rebella, Pablo Stoll
Com: Jorge Bolani, Mirella Pascual, Andrés Pazos, Ana Katz, Daniel Hendler
URU, ARG, ALE, ESP, 2004, 99 min.
Estreia em Portugal: 1 de Julho de 2010.
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